Traz a pessoa amada

Traz a pessoa amada

Das centenas de cartazes que anunciam videntes em muros e postes do Rio, vários apontam para este endereço em Copacabana.

Na entrada de uma vila estendida sobre rua comprida, com casinhas que parecem transplantadas de algum subúrbio carioca antigo, o segurança prostrado ao portão se adianta à estranha.

“Está procurando a Mãe Verônica?” Ora, estou. Será o guardinha um adivinhador? “Penúltima casa, pode ir lá”.

O horário tinha sido marcado pelo telefone. Três vezes tentei espremer a consulta na agenda, mas compromissos inesperados me obrigaram a desmarcá-la.

Quando tornava a ligar para o número estampado no poste, a mulher sempre insistia em remarcar a consulta para aquele mesmíssimo dia: “Pode hoje não? Tem promoção”.

Todos os dias, aparentemente, seu dom estava em promoção. Duas cabras pretas pelo preço de uma? Três nomes na boca do sapo e um quarto de graça? Não era nada disso o que eu estava buscando.

Os cartazes que mães e pais metidos com o oculto espalham por toda a cidade têm como denominador comum o famoso bordão: “Traz a pessoa amada em três dias”.

A variação é “Traz de volta a pessoa amada em três dias”. Se eu quisesse testar a eficácia do plano espiritual para unir duas pessoas no plano material, deveria estar disposta a reatar com algum ex.

Como não nutro esse tipo de desejo mórbido, optei por uma vidente que se propusesse a “trazer a pessoa amada em três dias” e ponto. Se o sujeito partiu com a marca de um salto feminino no bolso traseiro da calça, deve permanecer no local aonde foi arremessado.

Se foi embora porque partiu um coração ou meia dúzia deles em infidelidades e lambanças, idem, e mais não digo.

Não digo mesmo. Mal abro a boca diante da vidente e sou convidada a subir a um quarto superlotado de imagens de santos.

Ela deixa um rastro de fumaça de Pall Mall que eu sigo até um quarto nos fundos, depois de passar pela sala de estar entulhada de eletrodomésticos de última geração – até home theater e tevê de plasma.

Para entrar, desvio de um cachorro preto gigante e de raça indefinida que se espreguiça no caminho.

O altar toma mais da metade do cômodo. Mãe Verônica atende numa mesinha encostada à parede, onde uma janela fechada impede a entrada de qualquer raio da luz do dia.

Nem permite que circule a fumaça dos cigarros da vidente, que acende um atrás do outro. As cartas são lidas.

Em que você trabalha?

Eu… escrevo”.

Hmmm. Escriturária, é? Muita inveja no local de trabalho, mulher invejosa e loura.

A menos que minha gata esteja pensando em roubar meu emprego, Mãe Verônica está chutando deliberadamente. Meu “escritório” é minha casa sou freelancer  e a única outra fêmea a circular por perto enquanto trabalho é Maria, uma gata. E ela é preta.

Mãe Verônica me olha como se esperasse algum sinal de confirmação do que ela acaba de decretar.

Mas eu não consigo produzir nada em resposta além de um meneio de cabeça que pode significar qualquer coisa, até mesmo que vou começar a dançar a macarena. Decidida a me convencer, ela prossegue.

Seu marido, ele…

Desta vez, não resisto:

Não sou casada.

Mas tem um homem aqui, esse que mora contigo.

Moro sozinha.

Esse que é seu namora…

Na verdade, estou solteira.

Mas estou vendo aqui quatro homens.

Nunca fui tão devassa quanto na fantasia da cartomante.

Aqui diz que eles te paqueram. A mulher loira tem inveja. Você vai ter que fazer um trabalho no cemitério diz ela, cobrando pelo tour gótico a bagatela de R$ 100.

Trabalho em cemitério?! Mas por que, Mãe Verônica?

Pra casar com o homem certo, senão você pode escolher o errado.

Mas eu não quero casar, Mãe Verônica!

As cartomantes precisam de um upgrade em relacionamentos pós-modernos: hoje em dia, a maioria absoluta dos casamentos só acontece nas novelas.

Não quer casar? Você é lésbica?!

Não tenho a intenção de me casar com ninguém agora…

Ah, e quer casar quando? Com 80 anos?

Não, mas agora eu estou trabalhando…

E esse trabalho de escriturária é mais importante que casar?

Mãe Verônica ainda retornaria ao assunto do trabalho no cemitério umas três vezes antes que eu cortasse a história, dizendo que escriturárias ganham muito mal.

Mas não tem nem cartão de crédito?

Depois de assegurá-la repetidamente de que eu não tinha, não, despedimo-nos e deixei na mesa a “salva”, os R$ 50 cobrados pela consulta. Nesse momento, um rapazinho fracote que moscava quando entrei mete a cabeça para dentro do quartinho.

Ele pede licença e avisa que o “homem da garrafa d’água” está na porta e precisa ser pago. Com o cigarro aceso pendurado na boca, Mãe Verônica pega o dinheiro que eu colocara sobre as cartas e um troco retirado do bolso da bermuda. Está pago o homem da garrafa d’água.

Quando tiver dinheiro pro trabalho você volta?

Como se compreendesse as despedidas, o cão preto e gordo, que estava deitado de costas para o quarto, levanta-se para liberar a passagem antes que alguém o arrede. O vidente da casa deve ser ele.

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