Chifronésia, a vida é um processo de regressão, caminhando para o fim, cada passo é um empurrão. Assim filosofou dom Pedro de Lara, o rabugento mais querido da tevê brasileira, que no último dia 13 juntou-se a José Fernandes e Aracy de Almeida na sociedade dos jurados mortos.
A frase foi publicada no Livro da Sabedoria, lançado pelo humorista em 1999. Era mais uma tentativa de sobreviver à decadência dos programas de auditório – um símbolo do vídeo em preto-e-branco, cada vez mais fora de sintonia na era da TV digital.
Ranzinza, intolerante e moralista, Pedro de Lara encarnou por três décadas o jurado turrão, que esculhambava os aspirantes a artista e menosprezava as “colegas de trabalho” na platéia.
Burilou o personagem na Buzina do Chacrinha e o imortalizou no Show de Calouros de Sílvio Santos, onde dividia a bancada com ex-famosos como Sônia Lima, Flor e Décio Piccinini – aquele engravatado sorridente, tão sumido que não foi localizado nem para comentar a morte do colega.
Lírios brancos em punho, que descrevia como símbolo da pureza da família brasileira, Pedro repetia o número do reacionário à exaustão, numa paródia involuntária da velha TFP. E era sempre engraçado.
O cafajeste que fazia as feministas rirem
“Esse jazz é uma dança selvagem e não devia existir na face da Terra”, esbraveja o jurado, numa performance típica resgatada pelo YouTube. Seguindo o script à risca, o patrão SS argumenta que o jurado está ultrapassado e não compreende a arte moderna.
“Moderna pra essas leigas aqui da platéia, que não sabem de nada”, rebate Pedro, aumentando o volume das vaias.
O visual tosco – cabeleira desgrenhada, gravata borboleta e bigode de motoqueiro – emprestava charme a outra face do personagem: o machão convicto.
Diante das câmeras, os galanteios à moda antiga se alternavam com referências à mulher, Meg de Lara, como Chifronésia.
O desalinho entre imagem e discurso era tão grande que até a patrulha feminista se permitia rir. E, no universo paralelo da pornochanchada, rendeu papéis ao comediante em produções como As taradas atacam (1978) e Emoções sexuais de um cavalo (1986).
Dublê de psicólogo, astrólogo e vidente
Pernambucano de Bom Conselho, o ex-vendedor de cocada Pedro de Lara começou a carreira artística no início da década de 60. Treinou a lábia e a cara-de-pau famosas interpretando sonhos das ouvintes de Haroldo de Andrade na Rádio Globo.
Quando a tevê lhe fechou as portas, nos anos 90, voltou às origens ao se reinventar como astrólogo nas revistas Amiga e Sétimo céu.
Popular entre crianças de várias gerações, o comediante gostava de alimentar o próprio mito. Apresentava-se como primo de Lampião e repetia frases como “Quando Pedro de Lara quebra um espelho, os cacos têm sete anos de azar”.
Com a expressão séria de sempre, gabava-se de ter “profetizado” os atentados terroristas de 11 de Setembro no livro A porta proibida, de 1995. Mas o cunho da obra era outro: o elogio da moral e o ataque a tudo o que classificava como pederastia e vulgaridade.
Antes do câncer na próstata, o jurado carrancudo ainda defendia uns trocados fazendo o papel de si mesmo em clubes e feiras de cidades do interior.
Raramente reaparecia na telinha, como atração trash, em programas como o Pânico na TV. Pedro morreu aos 82 anos, no subúrbio carioca de Irajá.
Foi enterrado no Cemitério do Caju, na outra ponta da Avenida Brasil, com os característicos lírios brancos sobre o caixão.
Depois de repetir frases de efeito e duplo sentido para exaltar a memória do ex-colega, a inimitável Elke Maravilha deu sossego aos repórteres para puxar o coro: “Pedro de Lara-ra lalalalá lalá…”