Academia Brasileira de Literatura de Cordel

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Academia Brasileira de Literatura de Cordel

Cordel, a plaquinha na porta anuncia que a casa modesta em Santa Teresa é mais que um simples sobrado: “Academia Brasileira de Literatura de Cordel”.

Sentado à entrada, o senhor de sandálias também vai além do que parece: é um imortal. O cearense Gonçalo Ferreira da Silva, de 69 anos, é fundador e presidente –

“antidemocraticamente no poder há 18 anos” – da ABLC, criada em 7 de setembro de 1988 para zelar pela memória e divulgação dos livrinhos de versos ilustrados que circulam no sertão nordestino.

Prestes a completar 30 anos de carreira, tem obra vasta e diversificada, com títulos ao gosto popular (“O monstro misterioso da gruta de Ubajara”,

“Só quando o homem é homem faz o que Juarez fez”) e outros opúsculos: contou em verso as vidas de Arquimedes, Platão, Pitágoras, Newton, Galileu, Gandhi…

Foto: Rony Maltz
Foto: Rony Maltz

Acervo de mais de 200 mil cordéis

O acervo de mais de 200 mil cordéis divide a casa com o próprio Gonçalo, a mulher, os filhos e um cachorro. Na garagem, abriu-se espaço para uma lojinha que vende exemplares aos visitantes e pela internet.

As encomendas chegam de todas as partes do mundo, mas a loja – “virtual e massificada”, repete Gonçalo sempre que avista um cliente – tem hora para fechar.

Os folhetos saem para dar lugar ao carro da família quando os filhos, responsáveis por uma tenda itinerante da ABLC, voltam para casa, “entre 20h59 e 21h05”.

A casa abriga ainda uma biblioteca, um centro de pesquisa e um auditório: uma dúzia de cadeiras dispostas no terraço. 

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Foto: Rony Maltz

Em vez de chá, baião

Num sábado de maio, o auditório da ABLC recebeu o evento mensal mais aguardado pelos imortais.

Enquanto a Academia Brasileira de Letras oferece aos convivas um pomposo chá, os cordelistas se fartam com um baião-de-dois preparado pela primeira-dama da casa, a Madrinha Mena.

Desde as 8h na cozinha, ela anda tem fôlego para, depois do almoço, comandar a roda em que os presentes cantam versos de cordel.

O repertório privilegia um certo artista cearense: “Vou cantar um poema de um livro seu”, sussurra ela, sem levantar os olhos do violão. Gonçalo sorri.

Foto: Rony Maltz
Foto: Rony Maltz

O caminho das urnas

O baião-de-dois é a oportunidade ideal para cordelistas ainda não bafejados pela imortalidade cortejarem a ABLC e seu presidente.

O maranhense Juareis Machado aproveitou o evento para fazer sua primeira visita à academia. Chegou sobraçando uma pastinha cheia de livros seus.

Quando viu o violão de Mena, animou-se: “O violão tem seis mil acordes: conheço seis, o resto fico devendo”.

Pôs-se a cantar “O patinho no Fantástico”, no qual o programa da TV Globo promove o reencontro emocionado do patinho feio com a mãe, depois de anos de separação.

Os presentes têm o privilégio de apreciar uma obra inédita: “Não publiquei com medo de o Fantástico brigar comigo”.

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Foto: Rony Maltz

Nome universal

O sábado foi um dia de festa pela inauguração oficial da mais nova instalação da ABLC: o Centro de Pesquisa Madrinha Mena.

A homenageada foi pega de surpresa. Gonçalo pediu que a mulher descerrasse a placa na porta da sala – “às 11h59” – e ela deu com o próprio nome gravado para a imortalidade.

Ou quase. Quando os dois se conheceram na Feira de São Cristóvão, Mena ainda era Maria do Livramento Lima da Silva.

“Gosto do meu nome, mas o Gonçalo quer que eu me chame Madrinha Mena”, confroma-se a primeira-dama do cordel. “É o seu nome universal”, sentencia Gonçalo. 

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Foto: Rony Maltz

Ideogramas familiares

Maior orgulho de Gonçalo, a biblioteca da ABLC reúne traduções de cordéis “para os principais idiomas ocidentais”. E não só eles: há volumes até em japonês.

A ponte com o Oriente foi feita por Joseph Luyten, acadêmico holandês apaixonado pelo cordel que conheceu Gonçalo ao se mudar para o Brasil.

“Um pesquisador e o presidente de uma instituição do porte da ABLC acabam se chocando”, pondera o literato cearense. Luyten levou os folhetos ao Museu Nacional de Kyoto.

A contribuição para a difusão do cordel fez com que a academia cogitasse abrir uma vaga para o estrangeiro. “Mas ele pereceu uma semana antes da eleição”, lamenta Gonçalo, antes de abrir um livro em japonês e recitar, com desenvoltura, os ideogramas:

“A música divina flui/ Sem cessar dentro de nós/ Porém os nossos sentidos/ Aniquilam sua voz”. É um de seus poemas.

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Desafiando Paulo Coelho

Em 2002, depois de muito resistir, Gonçalo aceitou disputar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. “Soube pelo colegiado que estava sendo cotado”, desdenha.

A cadeira era a de Roberto Campos, morto no ano anterior, e a campanha foi dura. Gonçalo garantiu três votos, entre eles o da conterrânea Rachel de Queiroz.

No dia da votação, em março, nenhum dos principais candidatos – o autor de best-sellers Paulo Coelho e o sociólogo Helio Jaguaribe – conseguiu os 19 votos necessários.

Um novo pleito, em julho, alçou o Mago à cadeira 21. “Pelo menos adiei a vitória dele”, comemora Gonçalo, que promete não se candidatar de novo. “Como presidente da ABLC, isso criaria uma incompatibilização”, justifica.

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Pau-de-arara é a vovó

No fim de maio, a ABLC abriu as portas para o mais novo de seus 40 imortais, o paraibano Chico Salles. A cerimônia de posse foi na sede da obscura Federação das Academias de Letras do Brasil, no Centro do Rio.

Eleito para a cadeira 10, cujo patrono é o celebrado Catulo da Paixão Cearense, Chico teve que ouvir um longo discurso antes de receber a medalha das mãos de Gonçalo.

Devidamente empossado, sentiu-se autorizado a monopolizar também o microfone. Além de poeta, o novo imortal tem longa carreira no meio forrozeiro nordestino-carioca.

É dele a inconfundível voz em pérolas como “Forró manhoso”, “Severina Cooper (It´s not mole não)” e “Pau-de-arara é a vovozinha”.

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5 COMMENTS

  1. eu sou maranhense fico feliz por demais quando ouça qualquer coisa desse naipe. dos meus irmãos nordestinos.obgda por existirem provocando essa grande diferença entre nós brasileiros,

  2. Como nordestina amo cordel. Confesso que antes não gostava, mas um professor me fez apreciar esse tipo de literatura. Foi o professor Tavares.

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