O que os zumbis têm a ver com a mobilização dos estudantes secundaristas de escolas públicas em todo o país? Para mim a estratégia de ocupação é a aplicação ético-política de um tipo de sabedoria zumbi.
Mas o que pode e o que sabe um corpo desmorto? Zumbis não seriam exatamente aqueles seres que se movem, mas nada pensam? Existe um videogame criado em 2009 altamente viciante chamado Plants x Zombies.
A situação é simples, típica do gênero tower defense [defesa de torres], pois para proteger sua casa de um ataque de mortos-vivos você deve plantar as mais variadas plantas e flores no jardim. Como assim, flores?
O oposto simétrico – o antídoto perfeito – do zumbi, um ser que não vive, mas anda, só poderia mesmo ser uma planta, um ser que vive, mas não anda. Plants x Zombies recebeu vários prêmios e é um sucesso em várias plataformas, pegando carona na zumbimania que se instalou no cinema, na tv, nos quadrinhos, na música (relembre Thriller, de Michael Jackson; ou ainda I Put a Spell on You, de Screamin’ Jay Hawkins) e até na literatura, tal como na releitura trash de 2009 de Orgulho e Preconceito (1813) de Jane Austen, por Seth Grahame-Smith.
De onde vem a recente onda de fascinação pelos zumbis? Mortos/vivos, monstros/vítimas, predadores/presas, esses mordedores em putrefação atraem e intrigam por sua ambiguidade estrutural: a de serem ao mesmo tempo estranhos e familiares à nossa própria humanidade.
Para a maioria dos pesquisadores o termo não tem origem clara, pode ter vindo do congolense mvumbi (indivíduo em estado cataplético) ou do ganense zan bibi (criatura da noite).
No Haiti os zumbis seriam pessoas induzidas a um estado de inconsciência através de drogas, incapazes de pensar, mas aptas a realizar tarefas e disponíveis a serem exploradas e escravizadas.
O primeiro filme de zumbi foi em 1932 (White Zombie, de Victor Halperin, com Bela Lugosi), ainda fiel à imagem haitiana de um homem vivo, mas dopado, quer dizer, aparentemente morto.
Depois veio a onda nas décadas de sessenta a oitenta especialmente marcada pela trilogia do diretor cult George A. Romero (1940-): A noite dos Mortos-Vivos (1968), Despertar dos Mortos (1978) e Dia dos Mortos (1985).
Nos filmes de Romero o zumbi é um morto que parece vivo, um cadáver que se move e tem fome de carne humana, espalhando a condição zumbi – causada por vírus, radiação ou algum acidente de laboratório – através de suas mordidas.
Dos anos noventa ao século XXI os zumbis evoluem. Em filmes como Resident Evil (1996), 28 days later (2002) ou na recente série televisiva Walking Dead (2010) eles progressivamente deixam de se movimentar lenta e desorientadamente, para se mostrarem fortes, ágeis, criativos, organizados, articulados e inteligentes. Seria o advento dos zumbis o sinal não do fim, mas de uma nova possibilidade de cultura?
Em recente entrevista o diretor George A. Romero reclama que a onda zumbi atual foca apenas na violência, ao passo que seus filmes carregavam uma crítica social velada aos valores do ocidente.
Diversos estudos surgiram relacionando os zumbis aos consumidores no shopping, aos dependentes em tecnologia, aos anestesiados pelo Rivotril ou pelo Prozac.
O morto-vivo se tornou a ilustração perfeita da alienação do homem contemporâneo, viciado em seu celular, debatendo-se mecanicamente no emaranhado das redes sociais da internet.
Pedagogos falam da dificuldade de acordar os alunos da letargia zumbi (R. Westrup), psicólogos discutem a subjetividade (narcísica e perversa) do zumbi estimulada no capitalismo (S. Rolnik), filósofos associam a rotina cotidiana de nossos hábitos à figura catatônica do zumbi (S. Zizek).
Somos todos zumbis, parece ser a mensagem. O problema da maioria dessas interpretações é que elas enfatizam apenas sua dimensão de espelho, revelando os aspectos mais sombrios da nossa verdadeira identidade.
Gostaria de arriscar aqui uma outra leitura, a de que os zumbis, ao contrário, são sempre os outros, no seu caráter de irredutível, mas contagiante, diferença.
A cena clássica de todo filme de zumbi – e também o ponto de partida do game Plants x Zombies – é a defesa de uma torre, de um território, de uma residência, contra a horda de devoradores de cérebro.
Qualquer semelhança com nossos condomínios cercados de grades altas impedindo a entrada de moradores de rua não me parece mera coincidência.
O pânico do público no cinema pelos zumbis reatualiza o pânico que o rei Luís XVI deve ter sofrido ao ver o povo escalando os muros da Bastilha em 1789.
Para mim os zumbis são um dispositivo para acionar o medo do establishment com a ameaça da chegada do outro, ou seja, qualquer um que não se encaixe no padrão do cidadão funcional, de boa aparência e submisso.
A ideologia de exclusão e criminalização da alteridade se manifesta explicitamente na denominação corriqueira e preconceituosa de “zumbis” aos consumidores de crack, mas se aplicaria também por analogia aos refugiados sírios ou migrantes mexicanos tentando, aos milhares, se infiltrar pelas fronteiras dos países ricos.
Além disso costuma-se temer que os nordestinos invadam e dominem o sul, que os habitantes das favelas desçam para o asfalto, que os negros se formem em medicina ou filosofia, que as mulheres assumam cargos de poder, enfim, que os pobres e miseráveis entrem nos shoppings, frequentem as praias ou simplesmente ocupem as calçadas e as praças das cidades.
O pavor do homem contemporâneo ao zumbi é o medo da possível revolta daqueles que estão sendo desprezados, escravizados ou oprimidos.
Nisso percebe-se a sabedoria simples e eficaz dos zumbis: invadir e ocupar os territórios do poder.
Os estudantes secundaristas que ocupam mais de 1000 escolas pelo país estão, ao meu ver, colocando em prática essa estratégia zumbi de resistência.
E estão contagiando mais e mais pessoas com uma forma diferente de ação política, para além dos partidos e dos sindicatos, um movimento dos estudantes pelos estudantes.
O nome do jogo agora é zumbis x escolas: contra o ideal de “escolas sem partido”, meras fábricas reprodutoras de escravos vivos-mortos, eis que surgem outras formas de apropriação do território escolar protagonizadas pelos estudantes-zumbis do século XXI: criativos e corajosos, organizados e autônomos, alegres e libertários, enfim, espertos e despertos.
Se e quando o dia do apocalipse zumbi vier, só atingirá aqueles que persistirem na defesa de um controle hegemônico e autoritário das torres.
Rio de Janeiro, primavera de 2016.
Charles Feitosa é Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha; professor e pesquisador em filosofia e artes cênicas da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), coordenador do Pop-Lab (Laboratório de Estudos em Filosofia Pop) e autor, entre outros, de Explicando a Filosofia com Arte (Prêmio Jabuti 2005).
Adorei a visão!
Obrigado Raquel, se puder ajudar nos divulgando, queremos passar esta visão por aí,abs do Cesario
Gostaria de tecer, respeitosamente, alguns questionamentos sobre o artigo.
O autor faz uma analogia da “estratégia zumbi” com as ocupações das escolas feitas pelos alunos secundaristas. De modo geral, as analogias são bem vindas quando pretendemos descrever elementos da realidade que nos parece, à primeira vista, complexos e de difícil percepção. No entanto, o uso de analogias pode prejudicar em vez de auxiliar, principalmente nos casos em que se substitui a realidade pela analogia criada. Infelizmente, me parece ser esse o caso do artigo “Urghhh: Escolas x Zumbis”.
Lógico que não quero dizer que o autor tenha tido a intenção de prejudicar ou ludibriar a análise acerca das invasões das escolas, mas tão somente mostrar que a sua percepção dos “papéis” desse “filme zumbi” me parece invertida. Explico: O autor descreve os alunos ocupantes das escolas como zumbis que estariam questionando o status quo e despertando “o pavor do homem contemporâneo” aos “desprezados, escravizados ou oprimidos”. Nesse caso, o zumbi é concebido como um agente questionador e representante de uma parcela excluída da sociedade, assim, o perfil dos “estudantes-zumbis” é definido da seguinte forma: são “criativos e corajosos, organizados e autônomos, alegres e libertários, enfim, espertos e despertos”, cujos propósitos e ações são movidos por “uma forma diferente de ação política, para além dos partidos e dos sindicatos, um movimento dos estudantes pelos estudantes”.
Nada me parece mais irreal! Com que respaldo o autor pode dizer que os “estudantes-zumbis” são autônomos e movidos por uma forma diferente de se fazer política? Acaso o autor acredita que jovens adolescentes têm a capacidade, experiência e maturidade intelectual de, sozinhos, questionarem os rumos da educação brasileira? Não é muita ingenuidade crer que professores, movimentos sociais ligados a partidos políticos e os próprios políticos não sejam os responsáveis por direcionar o ímpeto questionador e ativista do jovem justamente para a “velha forma de se fazer política”?
Eu não acredito nessa independência dos alunos e tenho motivos para tanto. Sei muito bem que os partidos políticos e os movimentos sociais têm uma relação simbiótica; sei também que partidos como PSOL, PC do B, PT, PCB e PCO estão ligados diretamente aos movimentos estudantis universitários, que por sua vez atuam nas escolas, principalmente nos ensinos fundamental II e médio. Estou por acaso falando alguma novidade? Alguém não sabe que isso funciona há décadas no Brasil?
Por esses motivos, vejo que a descrição da realidade feita pelo autor me parece distorcida. Nesse “filme”, também vejo o aluno ocupante das escolas como um zumbi, mas não no “papel” de personagem autônomo, corajoso, questionador e sim como seres sem vontade própria, guiados como massa de manobra por aqueles que insistem em dizer que não têm poder algum e que são oprimidos pelo establishment, quando na verdade são eles fazem parte de uma elite política.
Termino aqui, minhas colocações. Espero que o autor receba minhas palavras de maneira amigável, com o intuito de refletir sobre elas.
Abraços.