“Toca Maria Bethânia pra ela, mostra que tu é intenso”. O conselho maroto da protagonista Clara para o sobrinho acabou se tornando uma das frases emblemáticas do filme Aquarius. “Ela”, no caso, era a nova namoradinha do rapaz.
A música de Bethânia serviria como ponte para transferir emoções e construir uma imagem de homem febril nas paixões — embora tudo possa não passar de uma farsa romântica, uma estratégia com um certo grau de cinismo.
Tentar entender o que representa a “intensidade” na música e na personalidade de Bethânia, porém, pode nos levar a outras questões tão ou mais importantes do que o aperfeiçoamento da arte da conquista.
A obra de Bethânia — seus álbuns e espetáculos — versa, sobretudo, a respeito de emoções. Bethânia advoga e afirma em cada canção que escolhe interpretar uma certa forma de viver e lidar com os sentimentos.
A “educação sentimental” contida na música de Bethânia se choca, em certo sentido, com um mundo no qual sentimentos de ódio, ceticismo e negação apática e cínica das emoções parecem crescer rapidamente.
Afinal, qual é a intensidade de Bethânia e por que precisamos, sobretudo nós homens, urgentemente dela? Não apenas como estratégia espertinha de conquista — para além disso.
Existem inúmeros modos de ouvir música. Vinte de acordo com o crítico Ben Ratliff do New York Times — mas na real devem ser muito mais.
Em Aquarius, Clara ouve vinis dos anos 70 e 80, época de sua juventude. É uma audição emocional/afetiva. Tanto o objeto LP quanto a letra das canções fazem parte de um universo sociocultural habitado por Clara, com a maior parte das suas referências no passado.
Sua escuta da vitrola é carregada de intimidade, entrega afetiva e afloramento de emoções. Talvez, ao lado de Roberto Carlos, Bethânia seja o maior ícone da era dos LPs no Brasil.
Por alguma razão, a fase mais sentimental da intérprete, nos anos 70 e 80, parece fazer muito mais sentido em vinis. Sentar para escutar atentamente um vinil de Bethânia é um convite para um mundo de fortes emoções.
Em Aquarius, Clara sugere que o sobrinho toque Bethânia em uma estratégia de conquista. Podemos ir adiante, porém, e dizer que Bethânia, em doses a gosto do usuário, pode também funcionar como antídoto para a caretice e a frieza para a qual frequentemente somos tragados hoje em dia.
Será que vivemos uma época de resfriamento global das intensidades e paixões? Estaremos sendo arrastados para um mundo de risadas nervosas e cinismo medroso, árido em sentimento?
O cinismo contra a paixão
Um ensaio do escritor David Foster Wallace nos dá algumas pistas sobre essa onda esquisita. Curiosamente, ele abordou a questão analisando a vibe irônica que tomou de assalto a TV americana nas últimas décadas do século XX.
Para Wallace, essa nova ironia se destaca na literatura americana do pós-guerra, em obras de Don DeLillo, Thomas Pynchon, William S. Burroughs e outros.
Por trás da máscara cínica, afirma Wallace, os pais da ironia pós-moderna acreditavam que sua linguagem desnudaria hipocrisias e revelaria os cancros de uma sociedade adoentada. A ideia ali era “limpar o terreno”.
Acontece que a ironia corrosiva tornou-se uma coqueluche. De arma de guerra, se transformou num recurso adotado por publicitários e redatores de TV — entrando assim para o mainstream.
A ironia virou signo de inteligência superior e hoje séries de TV com personagens sarcásticos proliferaram.
Como reação, David Foster Wallace — que, não raro, recorria ao sarcasmo mais ácido e cometeu suicídio em 1998, aos 46 anos — apela em seu ensaio por um novo tipo de autor, que seja capaz de tratar as grandes questões humanas com “reverência e convicção”.
Mas o fogo se espalhou, e a verve cínica impregnou também o jornalismo, hoje muitas vezes difusor de um ceticismo de guerra que combate qualquer faísca de idealismo e emoção que possa irromper.
Bethânia e a emoção
Mas onde entra Maria Bethânia nessa discussão cabeluda toda? Bom, talvez ela e sua música sintetizem melhor do que ninguém essa tal intensidade que resiste ao cerco dos cínicos, céticos e desiludidos que proliferam.
No início dos anos 60, quando, muito a contragosto, deixou Santo Amaro da Purificação para estudar em Salvador com Caetano e o irmão Roberto, Bethânia passou quase um ano inteiro introspectiva, recolhida.
Vivia numa semi-clausura. Como conta Caetano em seu livro “Verdade Tropical”, a única distração da irmã era fitar misteriosamente o Dique do Tororó, contemplando por horas os diferentes tons de verde que as águas adquiriam.
Aparentemente, já estava presente ali o encanto de Bethânia pelas águas e todo o imaginário, as lendas e a força mística dos rios e mares brasileiros, tão exaltados em nossa música.
“Amores são águas doces. Paixões, águas salgadas. Queria que a vida fosse essas águas misturadas” — cantaria, muitos anos depois, em “Memória das águas” de Roberto Mendes e Jorge Portugal.
Analisando a cumplicidade que mantinha com Bethânia nessa época, Caetano escreve: “Do mesmo modo que me cabia decifrar-lhe as atitudes, cabia a ela ensinar-me o drama do mundo”.
É possível que, por drama, o compositor não queira dizer apenas sofrimento, mas também uma postura poética, artística diante da dor, da alegria, de todas as emoções.
Fernando Pessoa, quando fala do verdadeiro poeta e sua arte, o define como aquele que, “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.
É o que Bethânia faz com maestria através das canções às quais empresta sua voz e a alma.
Além da poesia, Bethânia ama profundamente o teatro e prefere ser chamada de intérprete do que de cantora.
Ela diz que, antes de elaborar um disco ou um show, precisa ter uma “ideia que guia” e “um sentimento a transmitir”. Desde o início da carreira, no show Opinião, Bethânia tem uma relação muito estreita com a arte de atuar.
Por mais específicos que sejam os personagens das canções que escolhe entoar, algo na forma como os traduz os transforma em figuras universais, espelhos dos ouvintes (especialmente dos narcisistas).
É assim quando ela incorpora o roqueiro sertanejo de “Baioque”, uma das muitas canções de Chico Buarque adornadas com sua voz grave:
“Quando eu choro, é uma enchente surpreendendo o verão. Quando eu amo, eu devoro todo o meu coração. Eu odeio e adoro numa mesma oração”. Intenso, não?
As origens de Maria Bethânia
Para entender um pouco melhor Bethânia, é preciso voltar a Santo Amaro da Purificação, onde tudo começou. Ela costuma dizer que a coisa mais importante que aprendeu com a mãe, Dona Canô — falecida em 2012, aos 105 anos — foi o apreço ao tripé “amor, festa e devoção”.
Outro elemento familiar herdado foi o senso de humor: “O ventre da minha mãe é muito limpo. Todos os filhos têm muito humor, o que é fundamental”.
Caetano lembra que a Santo Amaro de sua infância era uma cidade de classe média, sem ricaços ou miseráveis, sem desigualdade social.
Deve ter sido uma infância muito feliz, pois, certa vez, ao ser chamado de vaidoso por um jornalista “provocador”, Caetano se saiu com a tirada “Eu nem queria ter saído de Santo Amaro”.
A memória da pacata cidade do Recôncavo parece cada vez mais viva e potente em Bethânia. Ela define os pais como “sábios” e Caetano como um “ser luminoso, especial, mágico”.
A cantora lembra ter sido, desde sempre, um “bicho de ciúme”, danada de obsessiva, possessiva, exacerbada em todos os sentimentos.
Animal arisco, de humor oscilante, com “um rubi no coração com 29 pontas, vai para todos os lados, dá para muitas pessoas e emoções”. E era também, garante o irmão, a favorita de Dona Canô.
Na pré-adolescência, ainda em Santo Amaro, Bethânia “enchia o tanque de água e pulava achando que era o mar. Dava saltos de trampolim da cabeceira da cama(…) Me enchia de pancake na cara, tipo máscara de índio americano, me enrolava numas roupas de cânhamo misturada com fios de couro cobre que eu mesmo fazia ”.
No cotidiano familiar, lembra Caetano, Bethânia tematizava “o ciúme, a raiva, a exigência de exclusividade, o capricho.
Com apenas 14 anos, ela devorou Proust, para “já arrancar na vida sabendo das coisas” — seguindo conselhos do cineasta Álvaro Guimarães.
E adulta leu também com voracidade as aventuras de Mônica e Cebolinha — o que demonstra, melhor do que tudo, a amplitude dos seus gostos e o desprezo aos cânones do “bom gosto” convencionalista.
Bethânia e a religiosidade
Nascida em berço católico, Bethânia foi batizada e estudou em colégio de freiras. Quando menina, considerava o Deus pintado pelas irmãs como “muito mal, perverso e brigão”.
Ainda criança, disse pra Caetano que tinha medo de Deus e já estranhava os “padrecos esquisitos”.
Preferia conversar com Nossa Senhora do que com Deus, pos ela era a padroeira de Santo Amaro da Purificação, venerada em procissões e festas populares, enquanto ele, Deus, estava sempre distante, zangado e rancoroso.
Bethânia tinha ainda uma irmã de criação cuja família era do Candomblé. Menina, costumava fugir para contemplar as festas tradicionais.
A relação de Bethânia com o candomblé só se tornaria mais estreita após a intervenção de Vinícius de Morais.
Foi o poetinha que a levou ao famoso terreiro da Mãe Menininha do Gantois. Bethânia ficou extasiada por descobrir “uma maneira linda de se entender Deus de todos os modos (…) O orixá representa a natureza.
Além de o rito ser feliz. Tem dança, tem música, tem expressão corporal, tem irreverência, tudo tão mágico”.
Para Jorge Amado, Bethânia era simplesmente “um orixá”. Ela se identificou tão profundamente com esse universo que levou Caetano ao terreiro.
Ele era então, um “cético, ex-católico, neo-místico, ateu, confuso”. O encanto da Mãe Menininha também o tocaria para sempre.
Na década de 70, após passar um bom tempo badalando freneticamente nas boates cariocas, foi embotando aos poucos, caiu em depressão e, numa noite da qual não se recorda muito, tentou suicídio tomando remédios para dormir.
A psicanálise a ajudaria a se reerguer. Ela contou sobre isso numa entrevista para a Playboy: “(Fazer análise) fez brotar alguma coisa em mim, me despertar, jogar essa angústia fora, aguentar a dor. Depois tive perdas muito fortes, meu pai morreu …”.
Em entrevistas que concedeu, Bethânia se define como uma pessoa tímida e “escabreada”. Quando jovem, andava de moto a 150 por hora, não tremia diante da plateia.
Mas a idade lhe trouxe alguns medos: de rato, de trovoada (mesmo sendo filha de Iansã, a rainha dos raios), de insetos. “O medo veio agora, retroativo”.
Sua sensibilidade estética primordial moldou-se com os programas de rádio que a mãe ouvia. Rádio-novela, samba-canção, as disputas entre Emilinha e Marlene na Rádio Nacional, as vozes de Dalva de Oliveira e Nora Ney — duas de suas influências mais marcantes.
Eram oito irmãos, cada qual com as suas preferências: Clara Maria gostava de Francisco Alves; Maria Isabel de Orlando Silva; Caetano de Maysa, depois João Gilberto.
O “lado chique” do clã ouvia música clássica. Bethânia, a caçula, alimentou-se de tudo isso e reproduziu em sua carreira esse amplo leque de gostos e influências.
Foi da modinha ao rock, do samba de roda à bossa-nova, da canção romântica aos cantos do candomblé. Seu estilo é “não ter estilo musical”, como a própria define.
Depois de um longo período de introspecção, ela se esbaldou. O isolamento radical durante o primeiro ano em Salvador cedeu lugar ao encanto com a vanguarda artística da cidade.
A capital baiana era, então, uma cidade que fervilhava culturalmente e os irmãos Viana Teles Velloso mergulharam intensamente naquele mundo mais cosmopolita que se descortinava.
Quando, chateada pela mudança para Salvador, a irmã se trancava no quarto e não quBeria falar com ninguém, Caetano tentava “interpretar a atitude da irmã pelo que lia nas revistas a respeito da onda de inadaptação dos jovens aos mais velhos”.
É engraçado pensar que essas características parecem ter sobrevivido tenazmente na arte e na personalidade dos irmãos.
Ele, mais analítico, ela, explosiva e emocional, ambos fundamentais para nos falar sobre o “drama do mundo” com amor, festa e devoção.
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Parabéns pelo texto.
Ótimo texto!
Apenas uma correção: você diz que Bethânia foi para Salvador com Caetano e Renato… Mas, eles não têm nenhum irmão chamado Renato… Tem o Rodrigo e o Roberto. Não sei exatamente quem seria neste caso, mas acho mais provável que seja Roberto.
Mais uma vez, parabéns pelo texto!
Obrigado, Gustavo! Vou mandar seu comentário para o Pedro rever e corrigir, abraços do Palma! Cesario
Corrigido! Obrigado, Gustavo!
Um primor. O texto revela a nostalgia por um tempo em que a emoção era rasgada. Subia ao palco e tremulava. Bethânia, o autor e eu sobrevivemos ao resfriamento. Toquemos Bethânia sempre.
Obrigado, Rogério! Se puder nos ajudar divulgando o site, O PALMA agradece muito!
Genial!! Obrigadíssima!!
Lindo texto
Ótimo texto. Parabéns.
Que delícia de texto!!! A intensidade de Bethânia para nos salvar do cinismo…
Bethania é a minha paixão
Texto maravilhoso!
Adorei conhecer um pouco da intimidade de Bethânia !!
Só aumentou a minha admiração por ela !!
Passaria a minha vida , se possível fosse! ouvindo , falando e lendo sobre Bethânia . Ela é a simplicidade e intensidade da Mãe Natureza. Obrigada mesmo por escrever profundamente sobre essa mulher tão única.
Um mergulho na vida dessa deusa .Obrigada,obrigada,obrigada !
Reli,muito bom o texto.Eu só acho que a Maria Bethânia é bem diferente de Roberto Carlos,a baiana representa a MPB,ele representa a música mais popular.