Tão perto, tão longe: amor e desejo na pandemia

Antônio[i], um amigo português de vinte e cinco anos, me diz com toda convicção que nunca antes vivenciou um relacionamento tão saudável e duradouro. Há três meses, todos os dias, ele conversa por telefone com seu amante espanhol, trocam juras de amor, e fazem sexo via Facetime. O romance é recente, depois que ambos os países decretaram lockdown, portanto nunca tiveram contato físico íntimo. “Ele é a primeira pessoa com quem eu falo ao acordar, e a última antes de dormir”, suspira, derretendo-se com a lembrança, de forma atípica para seu modo de vida pregresso, repleto de festas, bares e noites de techno. Com o isolamento social, a distância obrigatória entre dois corpos torna irrelevante o ser amado estar na cidade vizinha ou do outro lado da fronteira. Nesse cenário, Antônio descobriu-se um romântico.

O mesmo não ocorreu para o casal paulistano Olívia e Felipe. Os dois mantém um longevo casamento de quase dez anos. Junto com a quarentena, veio a crise, nada grave, tampouco definitiva, mas o suficiente para uma solução criativa: o término pré-datado. Assim que a vida voltar ao normal, cada um segue seu caminho, livres do confinamento e das amarras matrimoniais, em mútuo acordo.  Afinal, com a renda mensal pela metade, quando não extirpada por completo, não é realista justo agora cada um morar em um apartamento – sem contar que o processo de busca por um novo lar fica bastante complicado nas atuais circunstâncias. E o aluguel de um quarto, para assim dividir uma casa com flatmates, também não parece uma opção confortável e segura. O casal demonstra estar tranquilo com sua escolha pragmática, são parceiros, companheiros, cúmplices, mesmo se separados.

Luciana estava junto com seu namorado havia mais de dois anos: cada um tinha seu próprio apartamento, porém em bairros próximos, dividiam o mesmo grupo de amigos, e ambos gostavam de ir a exposições de arte, beber cerveja no bar até de madrugada, dançar música eletrônica em festas em galpões abandonados, experimentar restaurantes novos, e passar fins de semana na praia. Em suma, não se desgrudavam. Nada mais natural que unirem as escovas de dente provisoriamente, por tempo indeterminado. Não deu certo. “Minha estadia na casa dele durou menos de um mês. Brigávamos por coisas ridículas. Um dia, foi um stress porque fechei a gaveta da geladeira com o pé. No outro, eu coloquei o carregador de celular em cima do disco de vinil. Antes, já havíamos terminado e voltado inúmeras vezes, portanto não sei se a quarentena foi o estopim, e sim o impeditivo para que o namoro fosse, mais uma vez, reatado”, conta. À parte disso, havia uma desconfiança mútua não em relação aos assuntos comuns do amor, e sim sanitários. “Certa vez, havia acabado de acordar, ainda meio sonolenta, e tossi. Estava distraída, não cobri a boca com o cotovelo. Ele me passou um sermão que acabou virando uma briga”.

Conversando com uma terceira amiga em comum, surgiu o questionamento bem-humorado: chegar em casa do supermercado e abraçar a namorada antes de lavar as mãos configura relacionamento tóxico?

Vamos aos números: é fato que a quantidade de pedidos de divórcio aumentou nesses meses de pandemia, seja aqui, seja na China. Afinal, é diferente conviver em tempos normais, quando cada um passa a maior parte do dia no trabalho, e há sempre o grupo de amigos no bar para diluir eventuais tensões. Já o atual esquema mais parece algo à la Big Brother. O cuidado com a casa e as crianças, tradicionalmente delegado às mulheres, também faz parte dessa equação. Foi muito divulgado na internet um exemplo gritante dessa desigualdade na divisão de tarefas: a submissão de trabalhos acadêmicos assinados por mulheres despencou nos últimos meses (37% dos envios na média geral desde 2016; 13% durante a pandemia). Tudo indica que a causa dessa mudança abrupta seja sobrecarga doméstica.

A plataforma Divórcio Consensual divulgou que ocorreu um aumento de 30% nos requerimentos entre março e maio em comparação com o trimestre anterior. O Google Brasil registrou um impressionante aumento de 9900% na busca “divórcio online gratuito”. Segundo o jornal chinês Global Times, as semanas seguintes ao fim do isolamento atingiram números inéditos de pedidos de divórcio. “Devido às longas filas, os funcionários nem tinham tempo para beber água”, diz a publicação. Ainda de acordo com o mesmo veículo, a notícia esperançosa é que, depois alguns meses do fim do confinamento, muitos casais chineses desistiram da separação e refizeram os votos de matrimônio. #LoveWins

Além dos motivos já citados, pesa o fato dos cartórios chineses terem estado fechados durante o lockdown, causando acúmulo dos requerimentos feitos ao longo dos meses anteriores. Portugal não terá o mesmo problema: mês passado foi aprovada uma plataforma dedicada a divórcios online, vinculada aos tabeliães, advogados e cartórios ligados ao Ministério da Justiça.

Sobre relacionamentos durante a pandemia, a grande questão só será respondida daqui há alguns meses: haverá ou não um babyboom? A possível nova geração de coronnials depende de uma miríade de fatores. O tédio da rotina pode fazer com que os casais estáveis façam mais ou menos sexo. O acesso a anticoncepcionais talvez fique mais restrito, levando a gravidezes acidentais. Há aqueles que preferem se planejar a longo prazo – nesse caso, o cenário econômico incerto no planeta não é propício a aumentar a família. Acompanhemos os próximos episódios.

Há alguns anos, enviar um nude para um paquera ou mesmo um fixo era considerado uma atitude ousada, até mesmo perigosa. Uma imagem vazada da mulher nua ou performando algum tipo de ato sexual poderia arruinar sua vida. O feminismo primitivo da época não conseguia evitar que a culpa quase sempre recaísse sobre a vítima – resultado de séculos de hegemonia daquela que é a terrível dupla dinâmica do patriarcado: o slut-shaming e o victim-blaming. Portanto, não é surpresa o resultado da pesquisa feita pela campanha End Revenge Porn: 51% das sobreviventes que passaram por esse tipo de situação tiveram pensamento suicidas. No Brasil, esse tipo de atitude só foi considerado crime depois da Lei Carolina Dieckmann, de 2012.

As coisas começaram a mudar a partir do lançamento do Snapchat: a rede social permitia que uma foto fosse permanentemente apagada dez segundos depois de visualizada. E, caso o destinatário fizesse uma captura de tela nesse meio tempo, o remetente era avisado. Isso também ocorreu em 2012, quando a promessa de sexting livre e nudes seguros fez o aplicativo ser o quarto mais baixado da iTunes Store. Desde então, passaram-se oito anos, e pode-se dizer que o nude deixou de ser tabu para virar até mesmo ferramenta de empoderamento feminino.

O que nos leva para o atual momento, com o caminho cada vez mais livre para o sexo virtual seguro, atividade que está salvando muita gente durante esse período em que a troca de fluidos está proibida. A Nin Magazine, revista de arte erótica que publica nudes enviados por anônimos no Instagram, teve aumento significativo de demanda nos últimos meses. “Há um semestre, havia parado com a seção, desde que a conta havia sido censurada do Instagram. Mas senti que a quarentena era um momento propício para voltar com as atividades. As pessoas até me mandam mensagens agradecendo o retorno”, conta Letícia Gicovate, editora da revista, e responsável pelo conteúdo online. As fotos podem ser vistas por vinte e quatro horas no stories da conta @ninmagazine sob a hashtag #AnoNINmous. “

Antes, a Nin Magazine recebia cerca de vinte fotos por dia, e o público era estável, frequentado por habitués – cujas fotos iam direto para a caixa da entrada principal. O aumento foi tão grande que agora entram mais de cem fotos na caixa secundária (no canto direito na tela, para interações com usuários desconhecidos, como se fosse um depósito de spam). “Desses, só consigo ver dez por dia, mas assim que eu libero espaço, chegam automaticamente mais dez”, conta ela. Segundo Letícia, o que diferencia as imagens recentes daquelas produzidas antes da pandemia é o capricho. “Parece que as pessoas estão se dedicando com mais afinco”. O tempo livre também faz com que os seguidores busquem ali um lugar de diálogo e troca. “Tem muita gente que quer conversar. Às vezes, até troco algumas mensagens, mas não posso ficar de psicóloga. Há desde solteiros até pessoas que estão carentes mesmo dentro de um relacionamento, ou precisam de um escapismo”, conta.

Ao que parece, a melhor solução para todo mundo é se relacionar com a internet. Na última semana, a Universidade de Harvard publicou um estudo que defende o uso de máscara durante o sexo – o que me lembrou as palavras de Vivian Ward, a prostituta vivida por Julia Roberts em Pretty Woman “I can do anything. I just don’t kiss on the mouth. It’s too personal”. Afinal, o que é realmente perigoso é a troca de fluidos no beijo, e não na genitália. Mesmo assim, a conclusão foi que seguro mesmo é apenas masturbação ou abstinência. Nos primeiros meses da pandemia, o site Pornhub liberou sua plataforma premium gratuitamente durante um mês, primeiro para aqueles que estavam na Itália. A gentileza se estendeu para o resto do mundo depois que o país deixou de ser o principal foco de contaminação.

A Killing Kittens, festa de sexo de luxo que tem edições em diversos países, migrou para a orgia via Zoom. Antes, cada casal pagava uma entrada de 250 libras. A versão virtual é mais econômica, apenas 20 libras. “As regras de etiqueta são as mesmas das festas presenciais”, diz a fundadora da festa, Emma Sayle. Por exemplo, há um acordo para que as reuniões online não sejam gravadas, mesmo que os nomes na tela sejam inventados, e muitos dos frequentadores usem máscaras. “Sou exibicionista e voyeur, então não estou preocupada com isso”, disse uma mulher que é cliente de longa data do Killing Kittens à revista Insider.

Em maio, o Brasil bateu a marca de um milhão de vibradores vendidos desde o início da quarentena. Na demografia entram tanto casados como solteiros, os primeiros fugindo do tédio e da rotina e os segundos para chamadas de vídeo com seus flertes online. Nos Estados Unidos, uma empresa de brinquedos eróticos está distribuindo vibradores de graça para qualquer pessoa da América do Norte. A ação é uma parceria da BBoutique, a loja online para os vibradores Bellesa, com o fabricante de vibradores alemães Womanizer. Basta inscrever-se no site, esperar a encomenda chegar pelo correio, e juntar-se à metade do planeta nessa particular jornada de autoconhecimento.

Manuela, uma amiga que terminou um casamento de oito anos às vésperas do início da pandemia, relata suas dificuldades de navegar a vida de recém-solteira no limiar de uma mudança drástica na maneira de se relacionar. “É como se eu estivesse numa eterna fase de adubação, com diferentes caras, sem saber qual vai vingar”, descreveu. Inicialmente, ela cogitava furar o isolamento social para encontros sexuais com algum dos seus pretendentes online. Nesse caso, o bom senso prevaleceu, e a opção foi abortada.

No entanto, Manuela teve sua sensatez colocada à prova quando soube de uma amiga que engatara um romance estável. Morando sozinha, sem namorar há cinco anos, conheceu um rapaz no Bumble – rede social estilo Tinder, com viés mais “feminista”. O primeiro encontro foi em casa já que não havia bares ou restaurantes abertos. Três meses depois, o casal mantém os encontros monogâmicos, variando de casa em casa (ele também mora sozinho). Assim, talvez seja possível fazer sexo seguro – expressão que ganha outra conotação em tempos que segurar as mãos é uma etapa importante do início de um relacionamento saudável. “São piscianos”, diz Manuela, creditando aos astros o sucesso da empreitada alheia.

O Happn, outro aplicativo de encontros, encomendou uma pesquisa entre seus usuários. Destes, 63% relataram que a busca por um romance foi intensificada durante a pandemia; 31% já fizeram sextingdurante o período, e, entre estes, 15% experimentaram a prática pela primeira vez; 16% foram por mensagens de texto, 10% enviaram fotos e 5% progrediram para o vídeo. Segundo Didier Rappaport, cofundador da empresa, “Os usuários estão passando mais tempo conectados e estão mais propensos a conhecer melhor a sua paquera. Isso pode significar o retorno de uma forma de romance em que os relacionamentos se tornam mais sensíveis e profundos”.

Manuela não faz parte dessa estatística. A situação era propícia, com inúmeros flertes à espera no chat, e várias selfies novas, pudicas, mas cheias de curtidas no Instagram. No entanto, o sexting pode ser intimidador para uma virgem virtual. É de conhecimento geral da nação que uma boa troca de nudes quase sempre envolve uma alternância entre nudes espontâneos e nudes de arquivo, mais caprichados, clicados com mais tempo, técnica, e com uma boa direção de arte – coisas que só a sucessão de tentativa e erro pode prover. Daí, é só escolher o melhor resultado. Depois de um tempo, perguntei como andava o progresso. Ela ainda não havia criado coragem para enviar nenhum nude, mas, por via das dúvidas, descobriu como criar um álbum secreto no celular para as fotos mais comprometedoras. Vai que.

Crédito ilustração: (Eddie Guy / Para o Los Angeles Times)

 

 

 

 

[i] Os nomes foram trocados para garantir a privacidade dos entrevistados

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