Círio de Nazaré e Festa da Chiquita
Festa da Chiquita, Paraense que se preze enfrenta a corda de peregrinação no Círio de Nazaré na segunda semana de outubro.
No sábado à noite, muitos aproveitam para escapulir do armário ao som do carimbó na Festa da Chiquita, tradicional encontro da diversidade sexual no Centro de Belém.
Mas a primeira parada gay do Brasil — e única no mundo a integrar um calendário de comemorações religiosas — não enreda apenas o povo amazônico.
Inúmeras carolas que desembarcam no Pará em busca de um espetáculo de fé terminam empurradas para o festejo profano.
A Nossa Senhora de Nazaré — ou Nazinha, como gostam os locais — despede-se dos fiéis em frente ao palco onde drag queens de peitos de fora convertem os peregrinos aos pecados da carne. Desperdício de penitência?
Não, os paraenses acreditam que os sacrifícios do Círio limpam a alma o suficiente para se permitirem alguma extravagância da carne.
No sábado, a corda de peregrinação atrai principalmente os mais jovens. Os vestibulandos paraenses formam um cordão humano, imprensam-se na esperança de que Nazinha opere o milagre que os anos mal aproveitados de escola não resolveram.
Esquecem logo a dor das mãos e dos pés para rebolar o carimbó em ritual de exaltação à diversidade. Os turistas também não faltam: já na procissão marítima são avisados da festa.
— Viajei para ver a peregrinação da corda, mas não quero perder essa tal Festa da Chiquita — confessava, na último Círio, a fotógrafa capixaba Carolina Youri.
A eleição do Veado de Ouro
É impossível escapar. Mesmo os não festeiros ficam pelos menos para “dar uma olhadinha”. Afinal, a procissão termina onde começa a festa. E a Chiquita segue noite adentro.
Só termina com a eleição do Veado de Ouro. O prêmio é uma homenagem a intelectuais ou artistas que contribuíram, de alguma forma, com a defesa da diversidade sexual.
O ritual de trasladação da imagem no sábado funciona como abertura da Festa da Chiquita. É como se a santa católica abençoasse a parada gay, para desespero dos marianos mais conservadores.
Alguns padres de Belém torcem o nariz para a Chiquita. Outros têm simpatia. Não defendem, mas justificam o ritual profano como uma forma alternativa de ampliar o turismo religioso na região.
O aval da igreja produz cenas que poderiam ser tachadas de contraditórias. Senhoras com terços no pescoço, resto de velas nas mãos e camisetas estampadas com a imagem da santa acompanham a apresentação das drags.
Bombardeadas pelo vocabulário escrachado, assistem timidamente ao show das laterais do palco.
O público gay esquece os pudores. Troca beijos apaixonados e vibra todas as vezes que as drags seminuas desfilam no palco e esfregam a bunda na cara dos músicos do Borboleta do Mar, grupo de senhores que tocam carimbó.
A parte mariana da platéia ensaia vaias, mas as beatas não arredam o pé. Todos querem saber quem será o Veado de Ouro. Valter Assis da Silva chega com a cara amarrada.
Poderia ser mais um dos católicos curiosos que “passam pela festa”, não fossem as pedrinhas de strass no chinelo e o delírio ao ver uma drag chifruda dizendo obscenidades no palco.
— Nossa Senhora de Nazaré, obrigada por me trazer aqui — ajoelha-se, tapando os olhos com as sandálias.
Em meio ao choro copioso, Valter é acudido, mas diz que está bem. Conta que saiu de bicicleta de Ananindeua, a 12 quilômetros de Belém, para ver a Chiquita. Ou melhor, o Círio de Nazaré.
Concorrência com a Igreja
Sem os chifres na cabeça e a maquiagem pesada, o animador da festa se apresenta como Eloy – o Eloy Iglesias. O cantor ganhou projeção com a Festa da Chiquita.
A parada ganhou as telas o documentário “As filhas da Chiquita”, exibido no festival Mix Brasil. Numa das cenas, Eloy vai à Delegacia de Polícia Administrativa de Belém em busca da autorização para a festa.
O artista conta que a Chiquita convive em harmonia com o festejo religioso. Atribui a contradição entre a parada gay e o Círio ao monopólio que a Igreja tenta impor.
Mas diz que a participação popular na festa é um fenômeno incontrolável.
— O Círio de Nazaré já faz parte da cultura paraense. Extrapola a fronteira religiosa. Durante o Círio, em todos os municípios do Pará existem homenagens exclusivamente regionais, cada uma com sua peculiaridade.
A festa sempre teve o lado profano. O Auto do Círio é um bom exemplo disso — acrescenta.
O Auto é uma encenação realizada por estudantes de teatro da Universidade Federal do Pará. Inspirado na paixão de Cristo, acontece desde 1993, em frente à Catedral da Sé.
Assim como a Chiquita, tem um tom de deboche: os personagens bíblicos passam por um processo de “humanização” que torna a releitura um tanto quanto profana.
Jesus Cristo, por exemplo, aparece requebrante e de fala efeminada. No ano passado, os organizadores protestaram contra a falta de patrocínio do governo do Pará.
A atração costuma contar com a presença de artistas de renome nacional, mas em 2006 não teve dinheiro para contratar ninguém.
Há 30 anos, a Chiquita divide as atenções durante a homenagem à Nossa Senhora de Nazaré. Intercalada entre as duas maiores procissões do festejo religioso, a parada gay obriga os fiéis a emendarem a madrugada profana com a manhã de sacrifícios do domingo do Círio.
Antes de o sol dar as caras, muitos descem direto para o mercado Ver o Peso, onde a disputa por um lugar na corda é acirrada. A berlinda de Nazinha precisa ser puxada, apesar da farra noturna.
A última corda, no domingo, reúne mais de dois milhões de pessoas. Os fiéis percorrem um trajeto de quatro quilômetros em quase 10 horas até a Basílica, no bairro Nazaré.
O ritual representa o esforço dos paraenses em levar a santa de volta ao lugar de origem.
Foto em destaque: Evna Moura