Aldir Blanc – delírios de um gato de subúrbio

Poeta de muitas faces, fases e frases, Aldir Blanc fez das canções uma resposta ao tempo.

“Acendo um cigarro

 molhado de chuva até os ossos

E alguém me pede fogo

 é um dos nossos”

Em geral, o artista almeja ter seu nome lembrado muitos anos após deixar esta vida. Para Aldir Blanc, porém, a suprema glória residia no esquecimento. A bem dizer, no esquecimento do nome do autor, na vida autônoma da canção já sem compositor. Aquela que vira assovio de bêbado na madrugada e se espalha de boca em boca, de roda em roda. “Sou, antes de tudo, compositor popular, e quanto mais cantado sem que lembrem o nome do autor, mais verdadeira será minha modesta herança”, declarou Aldir, numa entrevista recente ao jornalista Renato Rovai.  

Certa vez, Aldir topou com um popular batucando “Kid Cavaquinho” no ônibus, sem a menor ideia de que o autor estava ali ao seu lado. Citou esse episódio como um dos grandes momentos de sua carreira. O desejo de estar na boca do povo, entretanto, convivia com a determinação de não se dobrar às exigências do mercado. “É isso que faz ou não uma pessoa, um compositor. É a capacidade de dizer não ao cara lá do outro lado da mesa, de resistir à política do  advancement, do adiantamento com que a gravadora te compra”, explicou Aldir ao Globo, em 1976. 

Era preciso resistir à tentação do sucesso rápido, pensando numa obra maior. O que não significava ficar de fora da geleia geral do rádio e da TV . “Estamos aqui dando o nosso sangue no meio do liquidificador. Não queremos o sucesso nacional, espontâneo. A gente sabe exatamente o preço desse sucesso. Queremos uma coisa constante, crescente, sólida – explicou Aldir. – Basta não se desesperar, não saltar. Basta batalhar”. 

Galos de fogo puro

Aldir Blanc e João Bosco (divulgação)

Aldir e João Bosco batalharam por cinco longos anos até as coisas começarem a dar certo Aldir militou nos festivais universitários e numa associação de compositores, luta que nunca deixou de lado. João, vindo de Ouro Preto e recém-formado em engenharia, se virava para sobreviver no Rio. Foram anos duros. Os dois viviam visitando rádios, onde tentavam mostrar suas composições. Bebiam e conversavam muito. Sabiam que algo grande estava por vir.  Treinado na escuta, Aldir ouvia o parceiro com atenção. Quando, por exemplo, João lhe contou sobre um natal na infância em que ficara desapontado ao ganhar um macaco que tocava tambor ao invés de um revólver de brinquedo, o poeta tomou nota mental daquela imagem. Anos depois a encaixaria na letra de “Falso Brilhante”:

O amor

É um falso brilhante

No dedo da debutante

O amor

É um disparate.

Na mala do mascate

Macacos tocam tambor

Durante os anos iniciais, Aldir dividiu-se entre a música e a psiquiatria. Trabalhou no hospital  do Engenho de Dentro e lá  conheceu de perto o tamanho do buraco da nossa miséria e abandono. Chegou a ter um consultório particular no centro do Rio. Ali, atendia, mas muitas vezes não conseguia cobrar dos clientes. Vez por outra, os levava para tomar umas num boteco nas redondezas. A rígida separação entre médico e paciente morria logo nos primeiros goles e nascia a camaradagem, o afeto. “Com consciência crítica, não posso definir claramente até que ponto aquilo era uma atividade médica…Talvez possa ter ajudado algumas pessoas, e é possível também que tenha prejudicado outras…”, declarou na mesma entrevista ao Globo em 76.

A luta pela carreira musical já vinha atropelando a cada vez mais broxante vida no consultório, que Aldir resolveu fechar, literalmente, da noite pro dia. Foi após uma epifania num show do  João. Em seu íntimo, já havia concluído que “tinha muito mais afinidade com o tipo de comportamento dos chamados loucos do que com aquele padronizado, das atitudes consideradas normais ou mesmo médicas”.  

Aldir largou a clínica, mas levou o Brasil  ao seu bar/consultório. Escutou tudo: os causos, as banais mas nunca desprezíveis intrigas conjugais, os sonhos, as piadas, os sofrimentos causados pela injustiça social. Tirou das falas de um país de porre o sabor dos seus versos. Nos anos em que a ditadura exaltava a ordem, cantou uma terra em transe alegre, passional e violenta ,com camelôs, pais-de-santo, sereias e tantas musas, latin lovers, boias frias, balconistas, palhaços, pinguços de coração partido, corpos no chão, algozes, heróis e toda sorte de entidades. Tornou gloriosas todas as lutas inglórias e fascinantes tantos amores e desamores pobres, mas nunca baratos. 

No fundo, uma eterna criança

Tijuca da década de 50, Arquivo da Cidade

Aldir foi, como disse o jornalista Alvaro Costa e Silva,  um “Proust escrachado dos subúrbios”. Fez de suas memórias de criança um material infindável ao qual sempre retornava. Buscou inspiração nas histórias e personagens da infância tranquila em Vila Isabel – bairro que homenageou em canções e num belo livro. Lá costumava passar horas sentado em cima de uma enorme goiabeira, lendo Monteiro Lobato. E também nos dias mais turbulentos no Estácio, onde era perseguido diariamente por uma turma de valentões. Bullying que só acabou quando simulou uma desculpa e desferiu uma cabeçada num deles. Assim passou de faixa na arte (marcial) da malandragem.  Mas antes também apanhou muito na escola, onde era um dos poucos meninos brancos e de classe média. 

Mais tarde,  compreenderia que aquelas sessões de porrada aparentemente gratuitas   eram o triste acerto de contas possível daqueles meninos com a injustiça do país. Como se não bastasse tanta surra, desde pequeno, Aldir também sofria de uma  hipersensibilidade intestinal que o levava a se cagar com certa frequência, característica que, segundo o próprio, teria lhe imunizado contra qualquer forma de soberba e falta de modéstia. 

Ainda no Estácio, Aldir ouviu pelo rádio o Brasil ser campeão do mundo pela primeira vez, em 58. Um de seus melhores causos de infância vem desse dia: no início do jogo, o avô paterno, um sujeito discretíssimo, entra na sala surpreendendo a todos com uma revelação bombástica: “sueco é tudo corno, eles têm prazer em dar a mulher deles pros outros comerem”. Ao fim do jogo, com a taça na mão do Brasil, o avô volta para se retratar: “Desculpas, o sueco não é nada disso, é gente boa”.

Roncou de raiva a cuíca

Umbanda (divulgação)

Muito menino, Aldir frequentava centros de umbanda com a avó. Nas sessões, ficava hipnotizado pelos atabaques. Em casa, improvisava tambores e arriscava uma batucada, compondo os próprios pontos. Essas foram suas primeiras aventuras no mundo da composição. “O primeiro canto, o canto essencial vem daí, da forma como a voz é solta dentro do terreiro de macumba”, explicou em entrevista ao Globo ao fazer 70 anos

Aldir continuaria criando pontos em muitas canções. Em “Boca de sapo”, da interminável safra com João, falou de uma mulher traída que costura a boca do sapo num trabalho para se vingar do marido infiel. Uma espécie de Edgar Alan Poe em forma de partido alto: assim como o sapo costurado,  o marido Honorato começa a definhar e implora pela própria vida:

“Mas ela se riu feito Exu Caveira:

marido infiel vai levar rasteira”   

Em “Nação”, Aldir introduz a canção com uma fala de Dorival Caymmi para Oxum. Em “Tiro de misericórdia”, de 1977, contou pela primeira vez a história de um menino dono de boca de fumo: “Um deus de bermuda e pé-de-chinelo/ Imperador dos morro, reizinho nagô/ O corpo fechado por babalaôs”. Cruzou a mitologia dos orixás com o trágico do cotidiano carioca, até ali pouco tematizado nas canções. Pelo tema e pelo canto meio falado, Aldir costumava dizer que era o primeiro rap do Brasil.  

 “Na época não se notava a obsessão que a gente tinha por violência. A cidade era uma pérola, não tinha violência…cidade maravilhosa. Então nos chamem de profetas”, disse numa  entrevista a Hugo Sukman, em 2003. “Linha de passe”, uma de suas mais brilhantes canções com João, começa com a descrição de uma cena que se tornaria cada vez mais cotidiana no país: um corpo estendido no chão com um jornal cobrindo um rosto anônimo. 

Talvez por isso, Aldir tenha sido tão importunado  pelos sensores. Foi por diversas vezes a repartições bolorentas tentar dialogar com burocratas ignorantes e autoritários. Relatou ter ouvido de um censor negro que o problema com a canção “O mestre-sala dos mares” era justamente a palavra “negro” do refrão “Salve o almirante negro”. Outra vez testemunhou, atônito e amedrontado, um agente borbulhar de raiva enquanto berrava que Ney Matogrosso estava transformando seu neto em gay. Mais uma vez, deparava-se com o grande fosso do Brasil. Tudo desgraçadamente muito atual. 

João, Aldir e a compatibilidade dos gênios

Capa Glauco Rodrigues

Em 1976, ano em que o seu Vasco papou a Taça Guanabara com o famoso “gol do lençol” de Roberto Dinamite, Aldir assinou todas as letras do álbum “Galos de Briga” do parceiro João. Venerado até hoje, espécie de Sgt Peppers suburbano, é uma obra que tem um pouco de cada faceta de Aldir e de João. Traz histórias que o primeiro pode muito bem ter ouvido num boteco qualquer, como a tragicomédia conjugal “Incompatibilidade de Gênios”. E também os elementos musicais inconfundíveis do segundo: o jeito inovador de tocar o samba com uma mão direita mágica, as harmonias com cordas soltas, o passeio por estilos musicais . Brilham ali personagens decadentes mas cheios de dignidade e carisma, como a falsa loira ex-atriz de TV e hoje escriturária do INPS de “Miss Suéter” ou o conquistador entediado  de “Latin Lover”. Talvez só Nelson Rodrigues – muito admirado por Aldir, que duvidava de sua fama de reacionário – tenha se dedicado com igual afinco e generosidade a observar e descrever essas figuras atípicas e ao mesmo tempo tão familiares do país. 

Mais de 50 anos depois, Aldir declararia que seus personagens continuavam todos pelas calçadas de sua querida Zona Norte, só não eram mais objeto de atenção de ninguém, senão quando vítimas de bala perdida. “Galos de Briga” é um disco todo de personagens e histórias. E Aldir sempre foi louco por histórias. Desde os gibis que o avô lhe dera na infância até as leituras de autores como Anthony Burgess, Kurt Vonnegut, John Updike e tantos outros que devorava com um apetite impressionante, passando pelo cinema e, claro, pelas histórias que ouvia e registrava na cabeça até decantarem em música. Pois Aldir não tinha apenas o dom da palavra, mas, também, o da escuta. 

Em 78 e 79, Elis, a grande intérprete de suas composições (menções honrosas à Nana e Leila Pinheiro), gravou duas  canções antológicas de Aldir sobre o Brasil. “O bêbado e a equilibrista”, a mais celebrada e lembrada parceria com João, começou como uma homenagem ao recém-falecido Chaplin, inspirada na melodia de “Smile”. Acabou por virar uma ode aos exilados – o criador do Carlitos foi um deles – e o hino da anistia, uma canção ainda dolorida, mas com uma ponta de otimismo.  

Feita  com o parceiro Maurício Tapajós, “Querelas do Brasil”, transformou o país num  imagético, métrico e fonético.: 

“Jereba, saci,caandrades/

Cunhãs, ariranha, aranha

Sertões, Guimarães, bachianas, águas

 Imarionaima, ariraribóia/

Na aura das mãos do Jobim-açu”.

 O refrão da canção trazia uma advertência que, hoje, parece  escrita na medida para os governantes e empresários que pressionam pelo fim do isolamento social: “O Brazil tá matando o Brasil”. 

Apreciador da vida noturna, Aldir bebeu até não poder mais e quando não pôde mais, por conta do diabetes, parou. Recolheu-se à família, outra das suas grandes paixões. Em sua fase de abstinência, só abriu duas exceções: no dia em que completou 70 anos e na morte do pai, Alceu, seu grande exemplo de simplicidade.

….e a Vila Isabel dá samba

João Bosco, Aldor Blanc e Moacyr Luz, na gravação de “Me dá a Penúltima”

Nos anos em que esteve separado musical e afetivamente de João, encontrou muitos parceiros. Letrou com a maestria de sempre as intrincadas melodias de Guinga nas quais não podia mudar uma notinha sequer. Dessa nova parceria surgiriam obras-primas, como o “Baião de Lacan” e “Catavento e Girassol”. Foi muito feliz ainda ao lado de Moacyr Luz e Cristovão Bastos com quem fez o último grande sucesso, “Resposta ao Tempo”, letra memorável composta em 15 minutos, “com um café em cima da perna”. 

Resumindo o que suas não menos brilhantes crônicas publicadas na imprensa ofereciam aos leitores, Aldir explicou: “humor, a tentativa de cantar o espírito carioca, amor por nossa cada vez mais flechada cidade”. Louco por jazz (seu “bálsamo diário”) e por standards norte-americanos, venerava Noel Rosa acima de tudo e dizia que a música mais bonita do mundo devia ser alguma do poeta da Vila. 

Quando perguntado, na histórica entrevista que deu para os amigos ao fazer 70 anos, de onde afinal fluía a inspiração para os versos, Aldir respondeu: “Sem dúvida, quem letra é o garoto do curtíssimo período que passou em Vila Isabel, dos 3 aos quase 11 anos. Quando esse garoto morrer, o letrista, articulista, seja lá o que for, morre junto”.  O garoto se foi aos 73 anos.  Algumas das suas canções continuarão a ser cantadas mesmo que não se mencione mais o nome do compositor. Será sua resposta ao tempo. 

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