Ana Cristina Cesar: expressão da vida através da poesia.

Quando se trata de Ana Cristina Cesar, vida e literatura se harmonizam e se confundem a ponto parecer sempre complexo para os leitores distinguir os limites entre a autora e sua obra. É verdade que há uma relação de coexistência e sua poesia intimista reforça ainda mais esse vínculo. Se a consideramos uma poeta de vida breve, sua experiência literária se inicia, também, prematuramente e se propaga ávida e intensa.

Nascida em um ambiente intelectualizado, onde a mãe era professora de literatura e seu pai sociólogo, editor de uma revista religiosa e associado à militância da esquerda, antes de saber escrever, Ana Cristina, aos 6 anos de idade, já ditava poemas para a mãe. Um de seus primeiros, “Uma poesia de criança”, foi organizado em cinco estrofes e publicado no boletim do colégio onde estudava, e com apenas 7 anos teve um poema publicado no Jornal Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro.

Poema Ana Cristina Cesar
Foto: Instituto Moreira Salles

Aos 17 anos inicia o intercâmbio na Inglaterra, em Londres, onde pode aprofundar sua relação com a poesia de língua inglesa e com autores que, mais tarde, exerceriam influência sobre sua obra. Quando retorna ao Brasil, ingressa na PUC para estudar Letras e entra em contato com um universo intelectual em processo de desconstrução, onde se discutia a concepção de uma poesia de ruptura, liberta formalismos, de onde começava a irromper, no cenário cultural carioca, a geração da contracultura, em busca de sua emancipação estética.

Ana Cristina se destacou durante a década de 70 entre os autores da poesia marginal. Assim ficou conhecida a produção literária divulgada através da mídia alternativa como saída encontrada pelos artistas que se recusavam a submeter suas obras à censura da ditadura militar e também como recusa ao conservadorismo literário. Também conhecida como Geração Mimeógrafo, a poesia marginal era carregada de traços coloquiais, erotismo, elementos do cotidiano, gírias, textos reduzidos e temas que se distinguiam dos tradicionalismos da literatura brasileira.

Apesar de Ana Cristina Cesar estar classificada dentro do movimento da poesia marginal, algumas particularidades em sua escrita a diferem dos demais autores inseridos neste cenário e muitos teóricos e acadêmicos concordam que em sua poesia não há uma ruptura tão radical com os modelos canônicos da literatura. Ela própria parecia resistir a um estereótipo, assim como havia uma resistência à sua origem de classe média carioca, a qual ela parecia não querer pertencer, pela qual não se sentia representada.

soneto
Pergunto aqui se sou louca
Quem saberá dizer
Pergunto mais se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
Quem é a louca donzela
Que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?

 

Independente das contradições teóricas e da dispensável ansiedade em encaixar sua obra em uma categoria sólida, é preciso sobrepor a isso a peculiaridade de seus textos e sua originalidade.

 Ainda que empregasse a linguagem coloquial e que sua escrita retratasse o cotidiano, sua poesia não era óbvia. Segundo Silviano Santiago¹, conversando um dia com Carlos Alberto Masseder Pereira, Ana C. disse que ao ler uma poesia sua para Cacaso – amigo seu e grande poeta da Geração Mimeógrafo –, recebeu como resposta “É muito bonito, mas não se entende. O leitor será excluído”. Uma poesia, considerada por muitos, enigmática, hermética, que demandava um esforço por parte do leitor; tão livre que transitava entre a prosa, diário, carta, poesia. Por vezes, temos a sensação de estarmos invadindo a intimidade da autora.

 

 

28 DE AGOSTO
Dia de festa e temporal. Aniversário da Tatiana. Abrimos os armários de par em par. Não sei por que, mas sempre que se comemora alguma coisa titio fica tão apoplético. Acho que secretamente ele quer que eu… (Não devia estar escrevendo isto aqui. Podem apanhar o caderno e descobrir tudo.)

 

ARPEJOS (I)

Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.

 

FINAL DE UMA ODE

Acontece assim: tiro as pernas do balcão de onde via um sol de inverno se pondo no Tejo e saio de fininho dolorosamente dobradas as costas e segurando o queixo e a boca com uma das mãos. Sacudo a cabeça e o tronco incontrolavelmente, mas de maneira curta, curta, entendem? Eu estava dando gargalhadinhas e agora estou sofrendo nosso próximo falecimento, minhas gargalhadinhas evoluíram para um sofrimento meio nojento, meio ocasional, sinto um dó extremo do rato que se fere no porão, ai que outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano torpor me atira de braços abertos sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera dividir o corpo em heterônimos – medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo.

 

A poeta transitava com naturalidade entre outras áreas da atividade intelectual. Com a experiência adquirida tanto durante o primeiro período de intercâmbio na Inglaterra quanto no seu retorno ao país para concluir mestrado em tradução literária, em 1980, Ana Cristina traduziu obras de importantes autores da literatura inglesa. Seu trabalho envolvendo crítica literária foi reunido e organizado, postumamente, por Amando Freitas Filho – grande amigo de Ana C., a quem a poeta deixou a responsabilidade de cuidar de seu acervo após sua morte. O acervo de Ana Cristina encontra-se, atualmente, em posse do Instituto Moreira Salles.

A constante ênfase em seu suicídio aos 31 anos parece insignificante e sensacionalista se comparada ao peso de sua importância e distinção literária. Por que enfatizar o fim se sua obra se esta estende até hoje e dialoga tão bem com tudo o que vem sendo discutido atualmente no campo da literatura e no campo social? A autora fez de sua poesia a expressão de uma vida, que lhe transcorria intensa demais, e se imortalizou através da literatura: seus poemas vivem, pulsam, atraem.

[1] SANTIAGO, S. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro. Ed. Rocco. 2000. Pg. 62

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1 COMMENT

  1. Amei o texto, e li a corajosa Ana C. na minha adolescência e início de minha juventude, uma autora que marcou uma fase de minha jornada. Parabéns pelo texto, agora quero ver um artigo sobre Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst, ok…

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