Gênio desconhecido
Atafona, três e meia da tarde de uma quinta-feira de sol. Cabelo e barba desgrenhados, descamisado e descalço no conforto do lar improvisado no pontal da praia de Atafona, litoral norte do Rio, o jornalista, psicólogo, cientista político, filósofo e cibernético Neivaldo Soares abre com as mãos uma cabeça de traíra:
“É a melhor parte do peixe, tem até 5 sabores distintos”. Com destreza, retira os lobos frontal e temporal, duas pedrinhas brancas, e devora o miolo.
“O cérebro é bom para a memória”, explica. Ele discorre com fluência sobre Jung e Schopenhauer, mas tem dificuldade para completar a lista de seus oito cursos superiores.
“A memória é como um copo d’água. Depois de cheio, tem que tirar pra botar mais”, justifica-se. “Sou um acadêmico.
Não estou interessado em dinheiro, mas em conhecimento para contribuir para a sociedade. Só que nunca fui testado”.
50 anos em 5 linhas
Neivaldo Paes Soares, por batismo, ou Bambu, por alto e magro, nasceu em Campos há 47 anos. O primeiro emprego foi aos 15, numa rede de armazéns de libaneses (“meus pais postiços”).
Aos 18, já era gerente. No ano seguinte, foi para o Rio em busca de trabalho e estudo. Só conseguiu o primeiro, num restaurante natural em que foi servente, cozinheiro, gerente e caixa, “não nessa mesma ordem”.
Morou em Copacabana, Ipanema e, por dois dias, no Leblon, no calçadão junto à praia. Foi quando decidiu voltar a Campos.
Colaborou como jornalista com a Folha da Manhã antes de optar pela a tranquilidade do litoral campista, que frequentava desde a juventude. “Viver é tomar decisões o tempo inteiro”, filosofa.
Realismo fantástico
A 40 quilômetros da terra do chuvisco, Atafona é um balneário de São João da Barra que viveu o apogeu na década de 70, adotado pela elite usineira que ergueu na beira da praia portentosas mansões de veraneio.
Acometida por um impiedoso processo de erosão atribuído à própria geologia do local, mas com uma significativa contribuição do homem, viu o oceano engolir, na última metade de século, mais de 400 construções à beira-mar, entre casas de três andares, capela, farol e até um posto de gasolina.
As carcaças dos imóveis condenados pela natureza são hoje habitat de famílias de pescadores e pequenos comerciantes locais.
Constituem uma insólita paisagem de decadência, que poderia ter saído direto de um romance de Gabriel García Marquez.
Bar, doce lar
A bandeirinha nacional puída pelo vento nordeste guarda a entrada de uma casa de barcos cercada de areia por todos os lados.
Um fogão e uma pia, paus e tábuas fazendo às vezes de um balcão, isopores de gelo, revistas e jornais velhos, cadeiras de praia e mesas de montar decoram o lar e o bar de Neivaldo.
Vítima da aberração geográfica local, o galpão está isolado por 50 metros de praia de um minguante Paraíba do Sul, segundo maior delta do Brasil.
Bambu o ocupou há nove meses, três só tirando areia de dentro de casa. Energia elétrica não há. “A luz de velas cria um clima romântico”, valoriza.
Mas há providências a serem tomadas. A primeira é pintar na fachada, “em português e em árabe”, o nome do estabelecimento: Restaurante e Botequim Praianinha. Homenagem à lancha homônima que o galpão abrigava.
Lobos do homem
“Sai, Leão!”. O vira-latas obedece, descrente, para dentro de dez minutos voltar à sombra confortável do galpão Praianinha.
Alquebrado pela idade, cheio de feridas das brigas pelo cio da única cadela da região, Leão é apenas o mais fiel de uma matilha de cães vadios que segue Bambu por toda parte.
Ele os alimenta de manhã com ração comprada na quitanda vizinha, e, ao longo do dia, com restos do almoço dos fregueses. Já a gata Princesa goza de alguns privilégios.
Certa manhã de verão, época do ano em que bichos ribeirinhos se esgueiram para dentro das casas, apareceu no galpão com uma cobra-d’água morta debaixo da pata, a poucos metros da cama rasteira de Neivaldo.
Desde então, é tratada com regalias de realeza, à base de peixe fresco e mimos paternos. “É gata educada, não adestrada”, esclarece o pai protetor.
Ossos do ofício
Apesar dos planos de reformas no bar, o negócio é levado em banho-maria. Neivaldo preza sua tranqüilidade: “Não é bom quando vem muita gente”.
Os que aparecem, contudo, trata com cortesia de anfitrião. A cerveja está sempre gelada e o pescado do dia – fresco, limpo e preparado na hora – pode sair, dependendo da insistência do cliente, pela metade do preço.
Bambu não quer ver ninguém chateado. Nos dias mais fracos, quando não é amolado por fregueses, segue rotina religiosa:
“Acordo, tomo meu café, vou ao banheiro, depois sento e fumo meu cigarro de palha. Aí estou pronto para fazer alguma coisa. Ou, então, tomo uma decisão e fico sentado o dia inteiro”.
Relacionamentos abertos
A vida de asceta não exclui certos prazeres mundanos. “Atafona tem muita mulher!”, anima-se. Neivaldo defende que os turistas, descompromissados e sempre dispostos a se divertir, incitariam uma cultura local de libidinagem.
“Todo balneário tem uma liberação sexual maior”, contemporiza. Há alguns meses, uma nordestina que conhecera de férias em Atafona apareceu desavisadamente no portão da sua casa.
“Ainda bem que a reconheci de primeira”, lembra. Passaram dez dias juntos no galpão. “Avisei que não queria cena de ciúmes se aparecessem outras mulheres aqui”.
Ela queria casar. Pediu para que ele telefonasse. “De repente, um dia eu ligo”.
Aposentadoria em vista
Quando a luz começa a baixar, Neivaldo serve uma dose de cachaça, enrola o vigésimo cigarro de palha do dia e se senta à porta do seu galpão, olhando para o futuro. Literalmente.
À direita de onde o círculo vermelho afunda no Paraíba do Sul, jaz a semideserta Ilha da Convivência, a maior do delta.
É aquele o destino escolhido por Bambu para quando a serenidade do pontal de Atafona já não for suficiente.
Mas não tão cedo: a curto prazo, faz planos de plantar cem coqueiros em volta de casa, arrumar um violão e organizar luais semanais com os amigos campistas, entre outras necessidades mais prementes:
“Falo pra todo mundo que tenho 50, mas ainda estou com 47. Tá na hora de ter um filho, né?”