O Palma conversou com o pensador, escritor, teólogo e frade dominicano Frei Betto. Um dos nomes mais conhecidos no campo progressista brasileiro, o religioso ficou preso durante dois anos, na época do regime militar. Durante o cárcere, escreveu ‘’Batismo de Sangue’’, livro vencedor do Prêmio Jabuti de 1983, que destrincha as entrelinhas da ditadura, narra a resistência da Ordem Dominicana ao governo, e expõe crimes institucionais como a morte do guerrilheiro comunista Carlos Marighella.
Autor de mais de 68 livros, dentre eles alguns clássicos como ‘’Fidel e a Religião’’ e ‘’Típicos tipos’’, Frei Betto é seguidor e defensor da Teologia da Libertação, corrente de pensamento cristã que acredita que o Evangelho deva conceder auxílio e preferência aos mais pobres e necessitados. Além disso, o pensador mineiro foi assessor especial do presidente Lula, e peça-chave no desenvolvimento do programa ‘’Fome Zero’’, criado para combater as causas estruturais da fome no país.
Em entrevista ao Palma, o pensador comentou sobre seu novo livro, a dificuldade de se democratizar a cultura, o posicionamento da igreja em relação aos acontecimentos políticos atuais, e outros assuntos.
Um tema muito abordado pelo nosso veículo é a questão da democratização do saber. O senhor é autor de mais de 60 livros, qual a maior dificuldade que um escritor enfrenta na atualidade? Na sua opinião, como o Brasil pode distribuir seu conteúdo literário e cultural?
Frei Betto: Este ano lancei, em fevereiro, o 68º livro, O Diabo na Corte – Leitura crítica do Brasil atual (Cortez). Trata-se de uma análise da eleição de Bolsonaro e as forças que atuaram nos bastidores. Agora, em agosto, a editora Agir/Nova Fronteira relançou a nova edição revista de Conversa sobre Fé e Ciência, diálogo que tive com o físico Marcelo Gleiser sobre essas duas dimensões da experiência humana. Informações sobre minha obra literária pode ser obtida em meu site: www.freibetto.org Inclusive o modo de adquiri-los mais barato e recebê-los em casa pelo Correios.
Muitos fatores dificultam, hoje, a democratização do saber. Sobretudo por causa da pandemia. As palestras presenciais estão proibidas; livrarias, teatros e salas de música, fechados; exposições de arte, evitadas. Até mesmo a frequência à escola ainda não foi liberada. E, infelizmente, TV e redes digitais não chegam a ser propriamente boas fontes de saber.
As dificuldades que um escritor enfrenta no Brasil são várias, a começar pelo fato de o governo federal não valorizar a cultura, a arte e o saber. A Lei Aldir Blanc, de apoio financeiro ao pessoal da cultura, foi aprovada, mas os recursos ainda não chegaram a ninguém. As livrarias estão fechadas ou ainda são pouco frequentadas, a venda de livros depende de internet e Correios, as editoras enfrentam problemas financeiros, inclusive devido à inadimplência de grandes redes de livrarias. E vivemos em tempos de um governo que aposta no obscurantismo, a ponto de declarar que, quando descoberta, a vacina contra a Covid-19 não será obrigatória…
O Brasil vive hoje uma tensão política, e uma dúvida em relação ao futuro da democracia no país, tema de seu último livro ”O diabo na corte”. Como o senhor enxerga o atual contexto, comparado com a situação vivida durante o regime militar?
Frei Betto: Ao contrário do Uruguai, da Argentina e do Chile, o Brasil cometeu o grave erro de não apurar os crimes da ditadura militar e punir exemplarmente os responsáveis. E sabemos que a impunidade reforça a imunidade. Assim, temos hoje um governo que não é ditatorial, mas é autoritário. Não há prisões de opositores, mas há perseguições e, pelas redes digitais, difamações. E forte empenho em censurar a liberdade de expressão nas escolas e nas artes. Mais de 6 mil militares mamam nas tetas do governo federal recebendo dupla remuneração: o soldo da caserna e o salário de funcionário público, inclusive ocupante funções para as quais não têm nenhum preparo, como acontece no Ministério da Saúde. O Brasil não merece isso.
A Igreja Católica, assim como qualquer instituição plural, sempre apresentou diversas frentes e correntes ideológicas. O senhor é um ótimo exemplo do posicionamento político dentro da religião. Em um momento de oposição, a ala progressista do catolicismo está conseguindo se posicionar e combater as políticas do atual governo?
Frei Betto: Como você assinalou, a Igreja, como toda instituição – da família à universidade – abriga diferenças e divergências de opiniões. Nas décadas de 1970-1990, a Igreja Católica foi hegemonicamente progressista, firme na denúncia dos crimes da ditadura e na defesa dos direitos humanos. Isso está retratado em meus livros sobre os quatro anos que passei na prisão, como “Batismo de sangue” (Rocco), “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira” (Rocco) e “Cartas da prisão” (Companhia das Letras).
Hoje, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) está muito dividida. Há uma forte ala conservadora, mas há também a ala progressista afinada com as diretrizes do papa Francisco, como é o caso dos 152 arcebispos e bispos que assinaram a “Carta ao Povo de Deus”, na qual denunciam os desmandos do atual governo (ver em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/27/em-carta-ao-povo-de-deus-152-bispos-criticam-incapacidade-de-jair-bolsonaro).
Em seu livro ”’A mosca azul”, o senhor trata o abandono dos movimentos populares por parte do PT como o maior erro do partido. Como a esquerda em geral poderia retomar o trabalho de base já feito em décadas passadas?
Frei Betto: Considero a retomada do trabalho de base fundamental para fortalecer os movimentos sociais progressistas. Disso trato em meu livro “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco). Não bastam as críticas acadêmicas ou jornalísticas à onda autoritária que encobre o Brasil e tantos outros países. É preciso descer do salto alto e voltar a pisar no barro das favelas, das periferias, das vilas, dos redutos de trabalhadores sem-terra e sem teto. E resgatar o método Paulo Freire. Caso contrário as camadas populares continuarão assediadas por enganadores como a suposta pastora e deputada federal Flordelis, acusada de, em nome de Jesus, promover orgias e assassinar o marido.
Ainda sobre a questão de base, podemos observar o crescimento acelerado das igrejas neopentecostais na periferia. O senhor acredita que uma aproximação política do progressismo com a ala protestante pode ser benéfica?
Frei Betto: Sempre houve excelente relação entre o setor progressista da Igreja Católica e o setor progressista das Igrejas protestantes históricas, em especial através do Conic – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil. O difícil é dialogar com os neopentecostais de perfil fundamentalista, que mais falam do diabo do que Deus; mas do inferno do que a Terra; e arrancam o dinheiro suado do povo pobre. Esse tipo de religião foi enfaticamente condenada por Jesus. Basta ler o capítulo 23 do Evangelho de Mateus.
Entrevistado por Gabriel Bordallo.
Li “Uala, o amor” do Frei Betto quando ainda estava no ensino fundamental. Me marcou tanto que sempre falo dele pros meus colegas da graduação. É maravilhoso